Uma presença sempre constante


Há mais de dez anos entrava no ar uma minissérie em dezesseis capítulos que narraria a história de uma das protagonistas mais antagônicas da TV brasileira: Presença de Anita. De 07 a 31 de agosto, a minissérie causou certo alvoroço, pelo alto teor sexual e pela história, que mesmo parecendo clichê, era um "tapa na cara" da sociedade, ainda conservadora de 2001. Hoje vamos muito além da mera história da moça desvirtuosa que induz o marido frustrado no casamento a trair a esposa neurótica. Afinal, porque Presença de Anita, mesmo depois de tanto tempo, é tão contemporânea e inesquecível? 

Presença de Anita, de Mário Donato

Escritor paulista, de Campinas, Mário tem uma vasta obra literária. Mas talvez o mais relevante de todos seus livros tenha sido Presença de Anita (1948), que culminou em sua excomunhão da Igreja Católica. Depois do livro atrair a atenção de muitos leitores, as senhoras cristãs relutaram pela participação do jornalista no âmbito religioso. E foi inspirado nessa conturbada obra, que Manoel Carlos criou seus personagens. Em entrevista ao DVD lançado pela Rede Globo, o autor alega que fez grandes mudanças do livro para a minissérie. Um delas se refere a uma cunhada de Fernando (José Mayer), chamada Diana, que não está presente na obra televisiva. Infelizmente, não tive a  oportunidade de acompanhar o livro, mas utilizei de palavras do próprio Manoel Carlos, para dizer que muitos novos personagens foram criados, assim como outros foram banidos. Além da minissérie homônima, o livro ainda serviu de inspiração para a novela A Outra Face de Anita, escrita por Ivani Ribeiro na extinta TV Excelsior, em 1964. A novela tinha a mesma estrutura da minissérie, onde narrava a trajetória de uma jovem que gera grandes complicações para uma tradicional família, porém com um ingrediente a mais, o personagem Otávio que chantageia a moça. 

A protagonista antagônica.

Com o simples teaser de lançamento da minissérie, muitos ficaram curiosos a respeito do que estaria por vir. Retratando uma casa antiga em um dia de tempestade, o narrador citava palavras de desgraça e dizia que ninguém ia resistir à presença de Anita. Confira:


Sim, isso já serviu de trabalho para mim na universidade e eu creio que tenha sido um dos teasers de lançamento mais bem feitos. Haja vista que consegue trazer à tona o lado sombrio e infantil da protagonista. O autor e o diretor Ricardo Waddington, quando pensaram na minissérie alegaram querer um rosto novo para dar vida à personagem. E entre mais de cem meninas, Mel Lisboa foi a eleita - dentre as candidatas tinham grandes nomes de hoje em dia, como Alinne Moraes. Com um rosto angelical, Mel não poupou esforços para dar vida à ambiguidade de Anita.


E muito além da ênfase no contexto sexual, que ficou tão marcado na minissérie, Anita se mostrava mais complexa do que uma simples personagem, mostrava ter várias faces, várias maneiras de ser, de se mostrar para quem quer que lhe interessasse. Em um trecho da obra de Mário Donato, que Manoel Carlos relatou bem na minissérie, apenas mudando algumas palavras, ela diz dessa gana em ser várias e uma, num paradoxo alucinógeno.

"Já imaginou o que eu represento para um bom amante? Quinze, vinte mulheres diferentes, cada noite uma: Cíntia, Anita, Luciana,Teresa, Cláudia, Maria…eu sou o nome e a mulher que um homem quiser! Eu sou o movimento, a ausência de rotina…”

E dessa maneira mesmo ela discorreu toda a trama, sendo a Cíntia amiga de Luíza (Júlia Almeida) e Lúcia Helena (Helena Ranaldi), uma moça doce, carinhosa e que havia sofrido um abalo no passado, relatando para Lúcia durante um churrasco no sítio. Ela era a devassa Anita, nos braços de Nando, sem pudores, sem regras, querendo viver e morrer um amor tórrido e desmedido. Ela era outra mulher nos braços de Zezinho (Leonardo Miggiorin), o ingênuo rapaz virgem. Com ele, ela queria ensinar, mostrar o que a vida podia lhe proporcionar e encantar o rapaz com toda sua desenvoltura e destreza para com a vida. Poucas vezes se viu na televisão personagem mais complexo do que Anita, que oscilava entre a santa e a suja em questão de minutos, sem deixar borrões de uma em outra. 

A masculina crise da meia-idade.

Fernando Reis também não foi um simples homem de meia-idade em crise. A expressão, inclusive, utilizada pela primeira vez pelo médico Elliott Jaques retratava justamente essa crise das pessoas que não se veem mais tão jovens e têm de lidar com os empecilhos da idade que se avança. Segundo o mesmo médico, a crise nos homens é mais prolongada do que nas mulheres, durando de 3-10 anos. Manoel Carlos é mestre em retratar homens de meia-idade que mesmo imponentes diante dos obstáculos da vida, se perdem diante de jovens mulheres. Como se encontrassem nelas a solução para o avanço de suas idades, como se isso pudesse impedir a areia da ampulheta de escoar. Vimos isso nas relações de Assunção (Nuno Leal Maia) em História de Amor, que larga o casamento com Helena (Regina Duarte) para ficar com Valquíria (Cláudia Mauro). A música tema do personagem aliás, fazia menção a essa crise em assumir os 40 anos: "Olha não parece, não parece vai chover. Embaixo da barriga o sol já vai morrer. E ele disfarçando,disfarçando Peter Pan". Em outras obras do autor percebemos essa dificuldade dos personagens masculinos em assumir que não possuem mais aquela disposição de anos atrás. E isso ficou mais do que esclarecido em Nando de Presença de Anita. Muito além de uma simples crise no casamento, o personagem alega que "perdeu o tesão" em tudo, para a própria mulher. Acreditou que, na aventura nos braços da ninfeta encontraria a paz e a sabedoria que lhe faltava, e ainda esperava encontrar. Mais do que isso, não soube lidar com a situação, pois viu que no fundo a segurança do casamento ainda lhe era mais importante do que uma relação extraconjugal insegura. Para dar vida ao personagem, outro ponto interessante, foi eleita a canção "Hier Encore", na voz de Charlez Aznavour. Veja  a tradução como se encaixa no personagem:
"Ontem ainda eu tinha vinte anos
Acariciava o tempo e brincava de viver
Como se brinca de namorar
E vivia a noite sem considerar meus dias
Que escorriam no tempo
Fiz tantos projetos que ficaram no ar
Alimentei tantas esperanças que bateram asas
Que permaneço perdido sem saber aonde ir
Os olhos procurando o Céu, mas o coração posto na Terra"
O final fatídico do personagem demonstrou sua ambiguidade, como se encaixasse perfeitamente na dualidade de Anita. Ele queria manter o tórrido romance, que lhe dava mais vitalidade, mas ao mesmo tempo, não conseguia se desvincilhar daquela monótona vida de homem de família, ao lado dos filhos e da esposa dedicada. E para incomodar mais ainda a insegurança de Nando com o passar do tempo, Manoel Carlos deu vida a Zezinho, um rapaz de quinze anos. Mesmo com as dúvidas em relação ao sexo, o rapaz tinha o vigor da juventude para criar um paradoxo com o protagonista da história.


O paradoxo do bucolismo.

Gravada em Vassouras, interior do Rio de Janeiro, a minissérie trazia o bucolismo interiorano. E o que mais aguça nossa curiosidade é o fato de como esse bucolismo foi agredido pelas agitadas tramas da série. Um armazém com vista para a promiscuidade da vizinha ninfeta, uma praça que servia de encontro para jovens, inclusive entre a filha e a amante do pai, um sítio que serviu de ampara para crises desmedidas de ciúmes e perda de uma esposa neurótica. Pode-se dizer que foi criado um universo pacato, simplesmente para servir de pano de fundo para uma história tão complexa e polêmica. O autor quis deixar claro isso, quando mostrou no primeiro capítulo uma fuga de bandidos em pleno bairro dos Jardins, em São Paulo. Nas cenas que decorrem, vemos que o diálogo de Lúcia e sua irmã Marta (Vera Holtz), relatando os problemas da cidade grande e de como Lúcia crê numa vida melhor nos dias que passará no sítio. E nem tudo fluiu como ela desejou, sendo que o movimento brusco da cidade lhe daria mais segurança do que o bucolismo de dias no campo. 


A viúva ambígua.

Um dos destaques da trama, que não tinha vínculo com a história principal foi Marta. A irmã mais velha de Lúcia e Julieta (Carolina Kasting) também mantinha a dualidade típica dos personagens da obra. Ela mantinha certa ojeriza por negros, mas no fundo escondia um desejo arrebatador pelos funcionários de sua casa, sempre negros. Durante os capítulos vimos ela se debater ao admirar a virilidade de André (Taiguara Nazareth). Em uma das cenas de sexo do rapaz com a empregada, que Marta passa a observar vemos a maneira como o autor expõe o desejo da personagem, retratando o orgasmo da viúva, em uma cena icônica para a teledramaturgia - o orgasmo feminino sempre foi tabu nas telenovelas, sendo o seriado Malu Mulher, o primeiro a tratar de tal assunto. 

Curiosidades: A minissérie é considerada uma das melhores do gênero, e mesmo assim, demorou mais de dez anos para ir ao ar. Manoel Carlos entregou a sinopse no começo da década de 90, sendo engavetada. Foi reprisada um ano depois da versão original, ganhando um novo ângulo da nudez frontal da personagem Anita, por conta do horário mais tardio de exibição. Durante a exibição, lojas do Saara, no Rio, vendiam o chamado "kit Anita", com uma calcinha, uma camiseta e uma gargantilha. As canções geralmente francesas, foram escolhidas pelo próprio autor. Ele também alegou que foi o responsável pelo exagero de cigarros em cena, como forma de representar o espírito destrutivo dos personagens.

Infelizmente é muita informação para um post não muito denso, com personagens complexos e uma história que, apesar de parecer clichê, foi contada com tanto primor que merece sempre ter lugar cativo em nossos corações - e no meu caso, em minha prateleira.