Realidade ou utopia: As Minas Gerais de "Coração de Estudante"


Ainda hoje, a novela Coração de Estudante (2002) é considerada uma "declaração de amor aos mineiros", segundo afirmou o próprio diretor Ricardo Waddington. A equipe de produção fez uma viagem de dois meses pelas histórias Ouro Preto, Tiradentes e São João Del Rey, como forma de inspiração na construção de cenários, figurinos e cidade cenográfica. Como bom mineiro, que inclusive estudou numa tradicional universidade do estado, eu lhes pergunto: as Minas Gerais da ficção corresponderam à realidade? Vamos aos prós e contras dessa história que encantou multidões. 

O lado verdadeiro das Gerais.

É inegável o destaque dado aos mineiros na história, não utilizando o estado apenas como pano de fundo da trama. A trilha sonora tinha grandes nomes do estado como Ana Carolina, Beto Guedes - participante ativo do icônico Clube da Esquina -, 14 Bis, Milton Nascimento, Pato Fu e Lô Borges com a representativa "Paisagem na Janela". 


A música foi escrita em um hotel de Diamantina, por Lô Borges e Fernando Brant, quando o Clube da Esquina foi fazer uma reportagem para a revista Cruzeiro. A música se tornou tão emblemática para o estado que, ainda hoje, não há mineiro que não a conheça. Lembrando também que o título da novela se remete a uma canção de Milton Nascimento.

Além da trilha sonora impecável que a Rede Globo conseguiu criar, os cenários conseguiram remeter bem à ideia do interior mineiro. As duas repúblicas da novela - República das Bananeiras, dos homens e República Três Corações, das garotas -, transmitiam aquela atmosfera universitária similar às repúblicas de Ouro Preto, Mariana, Diamantina e São João Del Rey. Ainda nesse âmbito, o estilo de vida dos personagens fazia jus a muitos estudantes da vida real. Apesar das festas, muito pouco retratadas - talvez por conta do horário -, o autor conseguiu traduzir toda a magia dos jovens que saem de suas longínquas casas para estudar numa universidade. E o cotidiano deles era algo engraçado e comum, para quem viveu uma vida dessas. Cachoeira, trotes do "bixo" vivido por Paulo Vilhena, reconstrução de uma igreja barroca pelo personagem de Rodrigo Prado, estudante de arquitetura. Ou seja, traziam o lado irresponsável de qualquer jovem de 20 e poucos anos, mas junto a isso, trazia os aprendizados da nova vida, sem a presença dos pais no policiamento. Dentre os jovens, destaca-se a história de Rosana (Alinne Moraes), que deu vida à uma estudante que era mãe solteira, que culminava no dobro da dificuldade.

Outra ponto interessante é o bar da Dona Esmeralda (Ângela Vieira), que servia como ponto de encontro dos jovens. Bar é outra coisa bem referente ao estado de Minas Gerais, não é atoa que se criou a expressão "não tem mar, vamos pro bar". E se num tivesse sido retratado tal feito na novela, estaríamos mal representados. E a personagem de Ângela conseguia transmitir aquela ideia dos donos de bares de cidade universitária, que muitas vezes têm nos alunos uma espécia de filhos. Talvez por saber das distâncias e dificuldades dos garotos em assimilar uma nova vida sozinhos, eles acabam criando vínculo com os mesmos. Afinal, dali pra frente, é dono de bar, é dono de prédio, é vizinho, enfim, qualquer um servirá de modelo paterno às ovelhas desgarradas.  


O lado utópico.

Bom, mas nem tudo são flores e a novela pecou em algumas coisas. A começar pela fazenda de João Mourão (Cláudio Marzo), que não tinha nexo com a suposta região onde era rodada a novela. Segundo comentários, a cidade fictícia de Nova Aliança era próxima a Ouro Preto, já que os personagens sempre iam para esta cidade. Bom, a região de Ouro Preto não tem solo que favoreça as atividades agrospastoris, comum na fazenda dos Mourão. As cenas foram gravadas em Vassouras, no estado do Rio de Janeiro, cidade que tem forte base no setor agropecuário.


Por falar em locação, a novela teve cenas rodadas em Tiradentes. Esta é considerada primor no quesito cidade histórica, já que ela vive praticamente à mercê da cultura e da história. Ela é próxima a São João Del Rey e diferente da novela, não possui universidade. Há quem diga que não serve de padrão às outras cidades históricas por conta de ter uma atmosfera de cidade cenográfica, tendo sua economia dedicada praticamente à cultura.

E se eu já adiantei que senti falta das festas de república, deixo também meus pontos que precisavam ser revistos. O trote da novela era praticamente uma brincadeira de rua, com farinha, ovo e tinta colorida. As coisas não bem assim, sendo que muitos trotes são proibidos e em alguns casos acontece somente nas repúblicas. Nesse caso, eles são algumas vezes mais radicais ou mais originais do que os retratados na novela. Bom, dentre realidades e ficções, a novela escrita por Emanuel Jacobina conseguiu transmitir um típico universo mineiro. Mesmo com alguns clichês, que nem nós mineiros aceitamos bem, a novela retratou bem a cultura interiorana das Gerais. E vale a pena lembrar que somente a personagem Esmeralda tinha um sotaque típico da região central, mas mesmo assim, tal fator nunca serviu de crítica nas análises da novela. E que fique claro que Minas Gerais é muito além de cidades históricas, e talvez merece também mais olhares em telenovelas, já que é um importante estado ainda ausente nas telenovelas.